A chave virou no trinco e destrancou a porta.
Lisa entrou em seu apartamento, no ombro esquerdo trazia sua bolsa, a tira colo
segurava alguns papéis e antes que pudesse colocá-los em uma mesa de centro,
virou-se rapidamente por um instante, ascendeu a luz. Em seguida fechou a porta
e a trancou. Na mão direita segurava uma sacola de plástico, daqueles com um
material ecologicamente correto, consciência
verde! Exclamou em voz alta em tom irônico.
Pousou
a sacola em uma mesa de jantar, aquela seria o seu jantar, afinal, estava
faminta. Ficou no Departamento de Homicídios até as nove horas da noite,
esperando o desenrolar dos peritos. A desculpa era sempre a mesma: a demanda
era demasiada. Mas agora, enfim, tinha em mãos os relatórios dos peritos, as
fotos, inclusive uma cópia do código que a deixara intrigada.
Tirou
a jaqueta, a toca e as luvas. Caminhou para o quarto a fim de tomar um banho
quente e começar a trabalhar no caso.
***
Lisa
estava sem sono, permanecia sentada sob a luz de uma luminária. Em cima da
mesa, no escritório pessoal estavam as fotos do homem que fora identificado:
trava-se de Jefferson de Sousa mais conhecido como Jeff, o taxista e agora a
vítima de um crime. Outra coisa que chamou atenção de Lisa foi à planilha com o
último endereço o mesmo em que o táxi fora encontrado, no espaço reservado para
o horário não fazia sentido. Lisa começou a procurar por um relatório, na
verdade o depoimento da atendente da central do táxi. Achei disse para si mesma. Pegou a folha e começou a ler:
- Marta Alves fez contato por rádio com o Sr.
Jefferson aproximadamente às 23h41min – Lisa fez uma pausa, olhava agora para
um mapa com a distancia entre o ponto em que Jeff estava e para onde deveria ir
– A senhora Alves desde então não fez mais nenhum contato com Jeff e vice-versa
– concluiu Lisa.
Colocou
a folha com o depoimento em cima da mesa, pegou o seu bloco e fez um esquema
com as evidencias que até então permaneciam em mistério.
- Evidencias:
- Horário incompatível: “6:2”;
- Inscrição com sangue no interior do capô:
“O cavalo branco”;
- Uma folha com números e três cruzes:
“Código”.
Ficou observando atentamente a
própria anotação. Recostou-se na cadeira, cruzou os braços com o semblante
fechado, pensativo. Observou os livros que estavam acima em uma prateleira,
seus olhos passaram pelos livros um de cada vez até que um deles a fez saltar
imediatamente da cadeira. Tratava-se de um dicionário de símbolos do escritor G.
Heinz-Mohr. Sentou-se novamente, folheou o livro até chegar na letra “C”. Encontrei! Falou para si mesma, então
começou a ler em voz alta:
- “Cavalo:
Apresenta vasta simbologia em diversas culturas. Simbologia ambivalente com
registros desde as cavernas do paleolítico... – fez uma pausa – Isso não
está ajudando muito! – disse Lisa como se estivesse falando para alguém ali ao seu
lado.
Leu
o restante do parágrafo com os olhos e num instante seguinte sua expressão era
de espanto:
- “Na
simbologia cristã – retomou a leitura em voz alta – aparece como o cavalo branco do ‘Cristo triunfante’ e como montaria do
cavaleiro apocalíptico. Símbolo da juventude, da força, da sexualidade e da
virilidade”.
Ao
terminar de ler ficou observando uma gravura que havia na mesma página. Logo
abaixo da ilustração constava uma legenda onde Lisa leu: “Os quatros cavaleiros do Apocalipse” (1498) do pintor alemão Albrecht
Dürer (1471-1528). Olhava para a gravura que sob a luz da luminária parecia
tão mais profética e fantasmagórica do que Dürer desejara. Lisa sentia uma
pontinha de excitação misturada com satisfação em ter descoberto uma parte do
quebra-cabeça, aliás, uma pequena parte. No entanto, lembrou-se de que não
tinha uma Bíblia em casa, nem mesmo um singelo Novo Testamento e logo veio a
frustração.
Olhou
no relógio, precisava ser mais rápida que ele: o tempo. Correu para a sala,
pegou o telefone e discou alguns números, meia hora depois estava no interior
da Biblioteca Pública. Isso sim é uma
Biblioteca! Pensou.
- Fique a vontade Tenente! – falou o policial
que fazia a guarda.
- Obrigada Gill! – disse Lisa gentilmente.
Colocou
a pasta sobre a mesa, tirou a jaqueta, respirou fundo e iniciou sua missão. Seu
objetivo era encontrar a versão da Bíblia que o assassino utilizara. Tirando as
versões em hebraico, latim e grego o número de versões traduzidas eram
demasiado grande, mesmo assim Lisa não esmoreceu, conferiu versão por versão e
nada, nenhuma batia com a inscrição em sangue. Lisa fez mais uma tentativa,
percebeu que faltava um exemplar, saiu correndo e gritou:
- GILL? – chamou pelo policial.
O
policial, no entanto, não respondeu. Lisa ouvia somente os próprios passos. Com
um movimento automático, Lisa saca sua arma, caminha lentamente até a mesa onde
o policial deveria estar. De repente ouve uma porta sendo aberta atrás de si,
vira rapidamente com a arma levantada.
- TENENTE! – assusta-se o policial.
- Pensei que estava morto! – disse Lisa
guardando a arma em seu coldre.
- Só fui ao banheiro! – falou Gill
recuperando-se do susto – O que aconteceu Tenente? – perguntou em tom de
nervosismo.
- Bom... Estou procurando por uma Bíblia que
não está na prateleira – disse ela – Sabe me dizer se alguém a pegou?
- Na verdade não! – falou o policial
recomposto – Ela não sai daqui, é algo raro! Venha, vou pegar pra você.
Caminharam
até uma prateleira de vidro e lá estava o que Lisa tanto procurava. A
investigadora não tinha dúvidas de que era aquela versão que o assassino havia
usado, deduziu ao ver a cruz dourada na capa preta, semelhante as que aparecem
no código.
- Aqui, é toda sua! – disse o policial
entregando o livro.
- Mais uma vez muito obrigada Gill... – fez
uma pausa e continuou - ...me desculpe se ti assustei!
- Não esquenta, já passou! – retribuiu ele com
um sorriso tímido.
Lisa
sentou-se à mesa, abriu sua pasta e retirou de dentro dela seu bloco, observou
sua última anotação:
- Evidencias:
- Horário incompatível: “6:2”;
Após ter decifrado a primeira
pista do cavalo branco, lembrou-se do horário incompatível na última planilha
do taxista, não demorou muito para ligar os fatos. Como San costuma dizer: Bingo! Pensou consigo rindo sozinha. Abriu no
livro do Apocalipse, capítulo seis, versículo dois e leu:
- “E
olhei: e vi um cavalo branco, e o que estava montado sobre ele tinha um arco, e
lhe foi dada uma coroa, e saiu vitorioso para vencer”.
Leu
mais uma, duas, três... Quantas vezes
mais seriam necessárias para decifrar o código? Indagou a si mesma com
certa raiva. A referência a fez lembrar-se da gravura do pintor alemão, pegou o
livro dos símbolos e ficou olhando-a a fim, quem sabe, exprimir alguma idéia do
que o assassino queria dizer. Talvez haja
alguma pista pensou. Mas nada vinha em sua mente somente o versículo
ressoando em seu pensamento... Quando de um sobressalto pegou a Bíblia e leu novamente
na seguinte parte:
- “...e
o que estava montado sobre ele tinha um arco” – pegou as fotos do corpo –
Tem que ser isso! – falou em voz alta.
Procurava
por algo, um detalhe que... De repente depara-se com uma das fotos do táxi mas
não é o veículo que chama sua atenção. Pega outra foto e então confirma o seu
assombro. Ela pega o celular, disca o número do seu parceiro que não o atende. Resolve,
então, deixar uma mensagem na secretária eletrônica a fim de encontrá-la em tal
lugar.
Lisa
não tinha certeza, ainda, mas parecia ter resolvido o caso ou só piorado o
nível de mistério, havia reticências em seus pensamentos. Mas, não podia perder
mais tempo, tinha que agir, fazer alguma coisa imediatamente. Saiu correndo da
biblioteca, entrou no utilitário e foi para o local onde o táxi fora
encontrado. Gill ao vê-la sair daquele jeito, abruptamente, ficou satisfeito;
no fundo sabia que, em parte, ajudara a tenente no caso.
***
A
noite estava fria, muito fria, aliás. Lisa fechou a porta do carro sem fazer barulho,
a sua frente ainda podia visualizar o táxi ali parado com as portas abertas.
Seguiu adiante, do outro lado da rua havia um hotel de quinta, pra ser mais
específico. As letras em neon não deixavam dúvidas – Hotel Apolo – Olhou para os lados, não havia movimento, a
rua parecia um deserto. Entrou no estabelecimento, na recepção, um velho com
barba branca e longa, de óculos e um cachimbo pra completar a descrição, estava
sentado prestando atenção na TV em um daqueles suportes de parede.
Lisa
por um instante observou o local: decrépito,
julgou. Tinha dúvidas se identificava imediatamente como policial ou alguém que
precisava de um local para passar a noite. Mas era tarde demais, afinal de
contas, seu distintivo estava a mostra bem na cintura. Deixou para se
martirizar no final, quando tudo chegasse ao fim, se é que fosse ter um fim.
- Procurando por alguém? – disse o velho com
a voz rouca.
Distraída
Lisa esquecera-se do velho de bela aparência a sua direita.
- Sim! – a única coisa que veio a sua mente.
- Precisa se esforçar melhor! – falou o velho
em tom irônico – Algum nome?
- Na verdade... – caminhou até aproximar-se
do balcão - ...na verdade gostaria de fazer algumas perguntas. Posso?
- Se for alguma coisa com drogas, tá perdendo
seu tempo moça! – falou asperamente – Não mecho com essas paradas a muito
tempo! – defendeu-se o velho.
- Não... Não estou aqui por isso! – tentou acalmá-lo
– Mas sim pelo táxi que foi encontrado aqui em frente! O senhor sabe de alguma
coisa? – perguntou lisa com certa tensão na voz.
- Humm! – murmurou o velho dando uma tragada
no cachimbo – Não sei de nada, senhora! – parecia uma chaminé com toda aquela
fumaça saindo pela boca e narinas.
- Alguém estranho se hospedou por aqui? –
inquiriu mais uma vez a investigadora.
O
velho fechou o semblante como se estivesse relembrando de algo estranho como
sugeriu a mulher. Lisa, no entanto, já ia saindo quando o velho resolveu abrir
a boca.
- Tinha um homem! – falou com certo temor.
- Continue! – disse Lisa.
- Duas semanas atrás veio até aqui... – fez
uma pausa e continuou - ...pediu para alugar um quarto e todos os dias deixava
um envelope com a diária. Aí ele subia até o quarto para pegar alguma coisa...
E de fato descia com uma bolsa. Mas hoje, engraçado... Não veio! – concluiu o velho
olhando para Lisa.
- Por acaso é o quarto seis? – perguntou ela.
- Sim... Como você sabe? – gaguejou o velho.
- É a única chave que tem pendurada a trás do
senhor! – concluiu Lisa – Preciso que abra para mim!
- Mas eu... – ia falando o velho.
- Mas nada! – interrompeu-o Lisa – Esse homem
pode ser um assassino preste a cometer outro crime.
O
velho mudou completamente de expressão, pegou a chave e subiu as escadas
acompanhado pela investigadora Lisa Ambrósio. Ambos atravessaram um corredor
escuro, sombrio. Ao chegarem em frente a porta com o número seis, o senhor
enfiou a chave no trinco, girou-a. Lisa, pois, com a arma em punho falou para o
velho se afastar. Pousou a mão sobre a maçaneta, virou-a. Afastou-se da porta
com três passos e soltou um chute na porta e entrou no quarto escuro.
Lentamente com a arma na altura dos olhos mirando foi observando o cômodo. Não
havia ninguém.
Inverteu
o interruptor da luz a fim de iluminar o ambiente, a sala estava limpa, tudo
organizado. Mas quando abriu a porta do quarto foi tomada de susto... Ascendeu
a luz e pode ver a mente de um psicopata materializada por todas as quatro
paredes. Fotos de corpos, manchetes de jornais, um mapa da cidade, uma foto do Hotel Apolo. Na parede junto da porta
havia um crucifixo e o capítulo seis de Apocalipse. De repente o silencio é
rompido pelo toque do celular de Lisa.
Minutos
depois San e o reforço chegam até o hotel que Lisa descobriu ser o quartel
general do assassino ou, melhor, o seu quartinho dos horrores onde expunha
todos os seus troféus.
- O velho foi levado para dar depoimento! –
falou San observando manchetes de jornais de outros homicídios.
Lisa,
no entanto não fez nenhuma observação. Estava olhando algumas fotos, possíveis
locais que o assassino escolheria para cometer seus crimes. Seu raciocínio logo
se voltou para a referência bíblica, novamente tinha que admitir que nada
daquilo fazia sentido.
- Por que ele cometeria um crime em frente ao
hotel em que se hospedou? – virou-se para San.
- Boa pergunta! – falou – Estava pensando
nisso agora e cheguei a seguinte conclusão!
- E qual foi? – quis saber Lisa.
- Ele estava nos observando o tempo todo
daqui! – caminhou até Lisa a entregou uma foto da manhã em que o táxi fora
encontrado – Ele queria ver como nos sairíamos.
- Você tem razão! – afirmou Lisa – E se... –
interrompeu a si mesma com a expressão de desespero.
- O que, descobriu alguma coisa que não
vimos? – San a perguntou nervoso.
- Ele estava nos observando o tempo todo para
ver se nós seguíssemos suas pistas! – concluiu.
- Você quer dizer que ele nos atraiu até aqui
porque ele queria isso? – perguntou San atordoado.
- Sim, exatamente! – Lisa virou-se e antes
que dissesse mais alguma coisa um policial os chamou.
Desceram
as escadas apressadamente, chegaram na recepção e outro policial indicou o
caminho. Percorreram um corredor e chegaram aos fundos do hotel e puderam ver
um corpo. Cumprimentaram Call, o legista novato.
- Senhoras e senhoras! – fez uma daquelas
piadas Call.
- Que merda! – exclamou San.
- O mesmo corte; rosto desfigurado... – fez
uma pausa, continuou - ...mas eu tenho uma novidade!
- Sem mistérios ok, Call! – disse Lisa.
- Estas roupas são do nosso taxista! E este
aí é o dono do hotel! Ele se veste com as roupas de suas vítimas. Não é
estranho? – afirmou e perguntou ao mesmo tempo Call, mas nenhum dos
investigadores lhe deu atenção.
San e
Lisa entreolharam-se. Ambos sabiam o que o outro estava pensando. A
investigadora lançou um olhar para o legista, estava agachado ao lado do corpo,
fazia algumas anotações e Lisa pôde perceber algo estranho, mas guardou aquilo
pra si mesma.
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