“Tudo
é incerto e derradeiro
Tudo
é disperso, nada é inteiro.”
Fernando
Pessoa
Era uma manhã cinza de
domingo. Uma manhã fria e chuvosa de domingo. Avançou subindo três degraus do
alpendre, apertou a campainha e enquanto esperava ser atendido encostou o
guarda-chuva ali mesmo perto da porta. Instantes depois uma jovem mulher foi
quem lhe abriu a porta. A face abatida revelava profundas olheiras e um olhar
triste, observou-a o homem parado à entrada.
- Obrigada por me atender hoje! – disse a mulher languidamente
como se já o conhecesse.
- Filha! – assim que falou foi conduzido até uma porta envernizada
– Não se preocupe! Fez muito bem me chamar, afinal esse é o meu trabalho! – a
voz era calma e afável.
Ele sabia o que devia
ser feito. A mulher, no entanto, disse ao homem de preto que preferia não
entrar a fim de deixa-lo sozinho para fazer seu trabalho a vontade. Girou a maçaneta
abrindo lentamente a porta, não queria fazer barulho.
Finalmente no interior
do quarto, uma turva luz atravessava as cortinas fechadas. Viu o enfermo deitado
em seu leito quase de morte, intubado, respirava com a ajuda de aparelhos. O fio de prata que lhe sustentava a vida
esvaia-se a cada segundo. Por fim, sentou-se em uma cadeira posta próxima a
cabeceira da cama.
Enfiou a mão no bolso
do paletó e retirou um livro. Abriu-o na página marcada com uma fita vermelha,
colocou seus óculos e deu início ao rito. Leu em voz alta um pequeno trecho do
livro, depois, com os olhos fechados e a mão estendida sobre o corpo do velho,
pronunciou algumas palavras, pedia que os pecados do velho moribundo fossem absolvidos
e que ficasse em plena paz.
Terminado o trabalho
levantou-se da cadeira, cumprira sua missão, guardou o livro novamente no bolso
do paletó. Observou pela ultima vez o velho sobre a cama. Caminhou até a porta
e antes que sua mão pudesse girar a maçaneta....
- Clérigo? - ouviu uma voz sussurrada e abafada lhe chamar.
Caminhou novamente para
perto da cama e ajudou o velho a retirar a máscara que lhe ajudava a respirar;
quando o fez pôde ouvir as breves palavras do idoso.
- Onde ele está?
Foi ali, naquele
momento que o homem de preto ou o Clérigo,
como era chamado. Percebeu que sua vida e aquilo que dizia acreditar
tornaram-se tão mais comuns do que simplesmente escovar os dentes todas as
manhãs. Sentiu a dúvida abrir um profundo e escuro abismo em seu íntimo.
Olhou para o velho
sobre a cama... Morrera, certo da única certeza irônica desta vida... A própria
incerteza.
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