segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A Incerteza Moribunda por Múcyo Alexandre





“Tudo é incerto e derradeiro
Tudo é disperso, nada é inteiro.”
Fernando Pessoa

           Era uma manhã cinza de domingo. Uma manhã fria e chuvosa de domingo. Avançou subindo três degraus do alpendre, apertou a campainha e enquanto esperava ser atendido encostou o guarda-chuva ali mesmo perto da porta. Instantes depois uma jovem mulher foi quem lhe abriu a porta. A face abatida revelava profundas olheiras e um olhar triste, observou-a o homem parado à entrada.

- Obrigada por me atender hoje! – disse a mulher languidamente como se já o conhecesse.
- Filha! – assim que falou foi conduzido até uma porta envernizada – Não se preocupe! Fez muito bem me chamar, afinal esse é o meu trabalho! – a voz era calma e afável.

    Ele sabia o que devia ser feito. A mulher, no entanto, disse ao homem de preto que preferia não entrar a fim de deixa-lo sozinho para fazer seu trabalho a vontade. Girou a maçaneta abrindo lentamente a porta, não queria fazer barulho.

    Finalmente no interior do quarto, uma turva luz atravessava as cortinas fechadas. Viu o enfermo deitado em seu leito quase de morte, intubado, respirava com a ajuda de aparelhos. O fio de prata que lhe sustentava a vida esvaia-se a cada segundo. Por fim, sentou-se em uma cadeira posta próxima a cabeceira da cama.

    Enfiou a mão no bolso do paletó e retirou um livro. Abriu-o na página marcada com uma fita vermelha, colocou seus óculos e deu início ao rito. Leu em voz alta um pequeno trecho do livro, depois, com os olhos fechados e a mão estendida sobre o corpo do velho, pronunciou algumas palavras, pedia que os pecados do velho moribundo fossem absolvidos e que ficasse em plena paz.

    Terminado o trabalho levantou-se da cadeira, cumprira sua missão, guardou o livro novamente no bolso do paletó. Observou pela ultima vez o velho sobre a cama. Caminhou até a porta e antes que sua mão pudesse girar a maçaneta....

- Clérigo? - ouviu uma voz sussurrada e abafada lhe chamar.

    Caminhou novamente para perto da cama e ajudou o velho a retirar a máscara que lhe ajudava a respirar; quando o fez pôde ouvir as breves palavras do idoso.

- Onde ele está?

    Foi ali, naquele momento que o homem de preto ou o Clérigo, como era chamado. Percebeu que sua vida e aquilo que dizia acreditar tornaram-se tão mais comuns do que simplesmente escovar os dentes todas as manhãs. Sentiu a dúvida abrir um profundo e escuro abismo em seu íntimo.


    Olhou para o velho sobre a cama... Morrera, certo da única certeza irônica desta vida... A própria incerteza.

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